Traduzir

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Episiotomias, cesarianas, histerectomias, ooforectomias…

O que estas cirurgias têm a nos dizer?
Aparte de ocorrerem apenas em um gênero – as mulheres – tais intervenções estão entre as cirurgias mais realizadas do mundo, mas a ninguém parece lícito questionar a necessidade de algumas destas cirurgias. Nós mesmos, os humanistas do nascimento, historicamente defendemos a cesariana bem indicada, criticando apenas seu uso abusivo e indiscriminado. Porém, estamos nos aproximando de números para os quais não existe justificativa. Nos Estados Unidos as cesarianas já chegaram a 33% das gestantes, mais de 1 milhão delas sendo realizadas todos os anos. O Brasil ostenta a vergonhosa marca de 52% de cesarianas todos os anos. No setor privado brasileiro as cesarianas se aproximam de 90%, mostrando que a obstetrícia brasileira desistiu da atenção ao parto normal, oferecendo a via sedutora e alienante da cesariana como primeira (e muitas vezes única) alternativa.
Estes números sobre a forma de nascer deveriam acender um sinal vermelho intermitente para a sociedade. A “vida natural” parece estar cedendo espaço de forma intensa para sua vertente artificial. O nível de intervenção sobre o ciclo fisiológico feminino atinge coeficientes absurdos e inaceitáveis. Entretanto, quando vamos analisar a cesariana com mais profundidade para entender as reais motivações para a sua realização abusiva, percebemos que ela não está isolada no espectro de intervenções sobre o corpo feminino.
As histerectomias estão entre as cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos. Por volta de 600 mil são realizadas todos os anos, e mais de 20 milhões de americanas não possuem mais o seu útero. As episiotomias, apesar da sua queda na prática obstétrica graças a quase três décadas de evidências científicas em contrário, ainda são muito utilizadas por lá. No Brasil os relatos das pacientes que sofreram uma episiotomia nos chegam diuturnamente, e até revistas para mulheres ainda as caracterizam como “pequenas intervenções que não machucam a mãe”.
Estas intervenções cirúrgicas ocorrem exclusivamente entre as mulheres e sobre a sua sexualidade. Qual a razão disso?
Para entender as razões para o aumento de cesarianas é fundamental inseri-las no contexto das intervenções culturalmente aplicadas sobre o corpo da mulher, onde esta cirurgia se situa como a mais chamativa, mas não a única.
A clitoridectomia – retirada cirúrgica do clitóris – cirurgia ritualística utilizada por alguns povos africanos, também se caracteriza por uma intervenção ablativa sobre o corpo da mulher. Para estas mulheres a retirada do clitóris as capacita para a vida adulta, fornecendo um ritual de iniciação preparatório para a maternidade. Este ritual milenar, assim como todos os outros que fazem parte do nosso dia-a-dia, não se estabelece ao acaso. Um ritual pode ser definido como “um ato repetitivo, padronizado e simbólico, de uma crença cultural ou um valor. Estas atitudes podem ser simultaneamente ritualísticas ou técnico-racionais”, segundo a definição de Robbie Davis-Floyd. Assim, um ritual qualquer pode ser entendido como a encenação de um valor cultural, de forma consciente ou não.
Uma clitoridectomia e uma cesariana, desta forma, obedecem a um ordenamento semelhante, pois se caracterizam por encenações de valores profundos relacionados à mulher e ao feminino. Se para muitos fica clara a ideia de que a clitoridectomia é uma violência para cercear e controlar a sexualidade feminina, para alguns a mesma lógica pode ser aplicada à realização abusiva de cesarianas, que apenas demonstra uma dificuldade de lidar com as energias de ordem sexual que se tornam evidentes no transcorrer de um parto. A retirada de úteros e ovários, práticas comuns nas sociedades ocidentais também corroboram esta hipótese na medida em que confirmam a noção do corpo da mulher como sendo imperfeito, mal elaborado e defectivo, indigno de confiança.
As sociedades humanas temem a sexualidade feminina porque ela atenta contra um dos seus pilares mais importantes de sustentação: o patriarcado.
As intervenções sobre o corpo da mulher estão assentadas sobre um olhar específico sobre o feminino. Cesarianas, histerectomias, clitoridectomia, episiotomias são todas faces de uma mesma figura. O uso alastrado de formas ablativas de intervenção em seus corpos se baseia na ideia da mulher como ser perigoso, traiçoeiro, dissimulado e inconfiável. As razões médicas para tamanha intervenção são incapazes de explicar a enorme adesão a esta forma de atenção. As culturas humanas olham para a mulher de uma forma depreciativa. Seus órgãos são frágeis e problemáticos, sua menstruação é uma “sangria inútil”, sua gestação é uma bomba relógio prestes a explodir e sua menopausa é uma “falência” que necessita de reposições químicas, caso contrário seus ossos se tornam farinha e se quebram.
Nenhum aspecto FISIOLÓGICO da vida masculina recebe atenção ou tratamento da medicina. Como dizia meu colega Max “Se mulheres tivessem barba haveria tratamento para isso”.
Para entender a profusão de cesarianas é importante entender a mulher e seu contexto. Para mudar esta realidade não será suficiente proibirmos as cesarianas, ou mesmo penalizarmos quem as comete em demasia. É preciso mudar a forma como a sociedade enxerga a mulher e o feminino, valorizando seus rituais de passagem e oferecendo um olhar positivo para eles. O cuidado com momentos críticos da vida reprodutiva e sexual de uma mulher exige mais do que simplesmente intervir quando é necessário; implica em valorizar o que existe de belo e estimular  a vivência mais natural possível destes eventos.
Ricardo Jones
Médico ginecologista, homeopata e obstetra Faz parte do colegiado nacional da ReHuNa - Rede pela Humanização do Parto e Nascimento Autor de diversas publicações nacionais e internacionais e dos livros "Memórias do Homem de Vidro - Reminiscências de um Obstetra Humanista" e "Entre as Orelhas - Histórias de Parto". Palestrante sobre a temática da humanização do nascimento no Brasil e no exterior. Trabalha em Porto Alegre - RS

Nenhum comentário:

Postar um comentário