Traduzir

domingo, 28 de setembro de 2014

Por onde saem os filhos?

Original em Revista TPM
Por Natascha Cortêz

O nascer no Brasil: Tpm ouviu histórias de diferentes partos (normal, cesárea, em casa)


A natureza diz que é pela vagina. Mas, se considerarmos o número de cesáreas feitas no Brasil, podemos dizer que é por um corte na barriga. Tpm ouviu histórias de diferentes partos (normal, cesárea, domiciliar) e o que os especialistas pensam sobre o nascer no Brasil. Tudo pra tentar entender: de quem é o parto e de quem deveria ser?


Segundo informações do Ministério da Saúde, um dos principais desafios das políticas voltadas para a saúde da mulher é a mudança do modelo que fez do Brasil campeão disparado em cesáreas. A maior pesquisa nacional já realizada, Nascer no Brasil, publicada em maio pela Fundação Oswaldo Cruz, confirma a preocupação do órgão: cruzamos a linha dos 52% de partos cirúrgicos na rede pública. Nos hospitais privados, o índice pode ultrapassar os 88%. Percentuais muito distantes dos 15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). São quase 1 milhão de brasileiras submetidas a partos cirúrgicos todos os anos. Contudo, o mesmo estudo diz: 73% das entrevistadas declararam desejar o parto vaginal no início da gravidez.
O que acontece para que essas mulheres não consigam realizar o parto que queriam? A pesquisaMulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, da Fundação Perseu Abramo, de 2010, dá uma pista: uma entre quatro brasileiras disse ter sofrido violência no parto. E, como explica a obstetra Carla Polido, “violência obstétrica vai muito além de tratamento desumano. Ser privada do contato com o bebê ou receber ocitocina sintética para acelerar o trabalho de parto apenas por conveniência médica também é violência”. Ao se depararem com as duas opções, cesariana e parto normal, ambas permeadas por violência, não é de espantar que as brasileiras prefiram a alternativa mais rápida – no caso, a cirúrgica. “Entre ser maltratada por 12 horas e ser maltratada por meia hora, qual parece mais fácil?”, indaga Raquel Marques, sanitarista e presidente da Artemis, instituição que promove políticas públicas para um nascer mais digno.

Dois filhos > uma cesárea e um parto normal

Olivian Moioli
Wanessa Camargo no parto do segundo filho
Wanessa Camargo no parto do segundo filho
“Tenho pavor de anestesia. Fiz tudo pra poder ter um parto normal na primeira gravidez, esperei entrar em trabalho de parto, fiquei 12 horas nele, mas não tive dilatação. Na época, meu médico disse que meu filho estava em sofrimento fetal. Fizemos uma cesárea. Chorei muito antes da cirurgia, pois queria muito o parto normal. Na cesárea, tive uma reação terrível à anestesia e odiei o pós- operatório. Fiquei 40 dias em casa sem conseguir me esticar, não conseguia fazer nada. Na minha segunda gravidez, novamente queria parto normal, mas não criei expectativas. Acabei trocando de médico, escolhi um defensor do parto normal e fiquei em uma sala de parto humanizado. Foi muito cansativo, mas faria tudo de novo 10 mil vezes. Ouvi muita história bobona pra me dar medo, mas meu médico me tranquilizou em relação a esses mitos todos. Foi aquele parto de novela mesmo, demorado, exaustivo, mas nunca pensei em desistir. No dia seguinte eu estava de pé, já andava e brincava com meu filho mais velho. Até o leite desceu mais rápido. Tive as duas experiências, e não tem comparação, o parto normal é muito melhor. Se precisasse ter outra cesárea, não sei se gostaria de ter outro filho.” -WANESSA CAMARGO, 31 ANOS, CANTORA  

Dois filhos > dois partos normais no hospital

Arquivo Pessoal
Leticia Spiller no parto de Stella
Leticia Spiller no parto de Stella
“Sempre me informei sobre parto. Nascer é um sofrimento no mundo ocidental. O ar-condicionado gelado, aquela luz azul e a instrumentalização hospitalar deixam tudo mais cruel. O que pude fazer pra deixar meus partos mais aconchegantes, fiz. Eu tinha 23 anos na primeira gravidez, e 37 na segunda. Os dois partos foram normais e em hospitais. Eu queria ter todos os recursos necessários caso acontecesse alguma coisa, sabe? Mas pedi que demorassem pra cortar o cordão umbilical, abaixassem a luz, desligassem o ar-condicionado e respeitassem meu tempo. Acabei tomando anestesia em um último momento, fiz uma força e, a Stella, minha segunda, nasceu sem dificuldade. Fiquei muito tranquila nas duas vezes e acho que isso ajudou muito. Me preparei bastante para poder fazer os partos. Tenho amigas bem jovens que já deixam a cesárea marcada, não entendo isso.” - LETÍCIA SPILLER, 41 ANOS, ATRIZ

Parto não é produto

"A brasileira está largada à própria sorte quando o assunto é assistência ao parto, sejam aquelas que usam o Sistema Único de Saúde ou as que usam a rede privada através de convênios médicos. Não existem notícias boas para essas mulheres. É muito triste quando o parto domiciliar é falta de opção, e não escolha, por exemplo. Quando uma mulher mora em uma área afastada e não consegue chegar a um hospital, se ela tiver pressão alta, se for gravidez de gêmeos, não pode ser domiciliar. Casos assim exigem uma UTI neonatal e outra para a mãe. A questão está na maneira como o parto é tratado. Quando temos um problema e não reclamos por políticas públicas que melhorem a vida de todo mundo, passamos a reivindicar pelo que pagamos e pelo que podemos comprar. Enquanto nos portarmos como consumidores, seremos tratados como tais e só receberemos serviços à medida que somos economicamente interessantes.” - RAQUEL MARQUES, PRESIDENTE DA ARTEMIS, INSTITUIÇÃO QUE PRESSIONA O PODER PÚBLICO E PROMOVE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA UM NASCER MAIS DIGNO

Insegurança médica

“Os estudantes de obstetrícia saem da faculdade como excelentes cirurgiões
e com pouquíssimo conhecimento da realização de um parto vaginal, saem com menos mão e superinseguros. Não podemos negar que a cesariana também
é um procedimento mais interessante tanto para o médico quanto para o hospital, por ser um evento previsível, com hora marcada, rápido e passível de maior controle. Porém, deveria ser uma alternativa de emergência para salvar vidas. Ainda temos o fato de as brasileiras serem pouco informadas a respeito do parto e acreditarem em falácias que envolvem sobretudo o medo de uma dor extrema e o da alteração de sua vagina.
A queixa de ‘alargar’ a vagina é comum, mas para isso existe a fisioterapia urogenital, que parece pompoarismo, só que tecnológico. Toda mulher tem acesso a ela, do SUS ao Einstein. Além
do mais, o parto vaginal implica em menores riscos de morte para mulheres
e crianças, aleitamento prolongado e melhor prognóstico gestacional para futuras gravidezes. O sofrimento fetal, só possível com o trabalho de parto, produz uma membrana que protege o brônquio da criança. Outro benefício é que esse parto é apertado para o bebê, a pressão no seu tórax faz com que ele elimine o líquido amniótico que fica retido nas vias aéreas superiores.” - 
RENATO KALIL, GINECOLOGISTA E OBSTETRA DO HOSPITAL ALBERT EINSTEIN EM SÃO PAULO 

Um filho > parto em casa (e esperando o segundo)

Arquivo Pessoal
Mariana Maffei após seu primeiro parto
Mariana Maffei após seu primeiro parto
“Desde que conheci o parto domiciliar, soube que era pra mim. Me sentia preparada por conta de um pré-natal bem-feito e das leituras que fiz sobre o assunto. Uma verdade: imaginava que teria muito menos dor. Ela é como uma cólica forte, só que por muito tempo. A dor vale a pena, faz parte do processo de se tornar mãe. Meu parto foi assistido por uma doula e duas parteiras, mas, na hora que meu filho nasceu mesmo, só estava a doula. Nem meu marido estava no quarto. O nascer domiciliar é completamente natural, não há medicação alguma. Uma mulher que quer parir em casa quer viver a dor e o parto.Otesãoquevocêtemao viver um parto natural é o de se sentir protagonista daquilo. Estou grávida novamente, vai nascer em breve, e quero ter em casa outra vez, não abro mão.” - MARIANA MAFFEI, 31 ANOS, EMPRESÁRIA

Um filho > um parto roubado 

Arquivo Pessoal
A bebê de Juliana Leandro
A bebê de Juliana Leandro
“Assim que soube que estava grávida de minha primeira filha, prometi a mim mesma: faria parto normal. Passava os dias lendo sobre tudo que se relacionava a parir. Queria me munir de informações, porque sabia o quão difícil era conseguir realizar o procedimento no Brasil. Apesar de ter seguido os passos recomendados para conseguir um parto normal, minha filha nasceu por uma cesariana. Desnecessária, como descobri mais tarde. Foram 12 horas de trabalho de parto, as contrações corriam como o esperado e tudo caminhava para o desfecho que planejei. Ainda assim, minha vontade foi negligenciada. Sentia minha filha fazendo força pra sair. Então, uma enfermeira brutalmente proibiu que eu ficasse de cócoras, uma necessidade que sentia. Estava vulnerável e não soube me defender. A justificativa que recebi foi que meu bebê passava por sofrimento fetal e uma cesárea precisava ser feita com urgência. Não vi saída a não ser autorizar o procedimento. Fui levada para a sala de cirurgia e em meia hora tudo aconteceu. Tive um parto roubado. Depois, analisando o prontuário, descobri que meu bebê tinha uma frequência cardíaca perfeita para o parto normal. Me senti enganada. O tratamento que tive foi, sim, violência obstétrica.” - JULIANA LEANDRO, 32 ANOS, BANCÁRIA 

Violência obstétrica vai muito além de tratamento desumano

“A violência obstétrica é consequência direta da medicalização do parto. Durante anos, intervenções no processo fisiológico de nascimento vêm sendo realizadas como regra de assistência, quando deveriam ser utilizadas apenas de acordo com necessidades específicas. O uso inadequado de procedimentos caracteriza a violência obstétrica, que vai além de tratamento desumano. Uso de soro com ocitocina sintética para aceleração do trabalho de parto por conveniência médica e hospitalar, exames de toque sucessivos feitos por diferentes pessoas, episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para aumentar canal de passagem do bebê) e privação do contato imediato entre mãe e filho após o nascimento são formas de violência. O parto ‘humanizado’ (termo, na minha opinião, equivocado e sujeito a interpretações dúbias) é o parto em que nenhuma intervenção é feita sem necessidade, um parto em que a mulher é corresponsável e, pactua todas as condutas e é a personagem principal do processo que gira em torno dela e da criança. Não sou de forma nenhuma contra a cesariana com indicação médica, mas não realizaria o procedimento eletivo sem motivo. Acredito que as mulheres têm o direito, sim, de escolher a cesariana. Mas, para a opção consciente, elas precisam saber de todos os riscos envolvidos, e, na minha experiência, sei que mulheres informadas não escolhem cesarianas.” - CARLA POLIDO, OBSTETRA E PROFESSORA ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS 

Quatro filhos > dois partos de cócoras e dois por cesária

Arquivo Pessoal
O segundo parto de Lila Ananda
O segundo parto de Lila Ananda
“Quando engravidei pela primeira vez, quis parto normal. Doeu muito. Menos de dois anos depois tive meu segundo filho, em hospital, com a mesma médica, novamente de cócoras. Imaginava que quando tivesse o terceiro seria na água. O pré-natal não foi tão bom como os dos primeiros e fiquei apreensiva. Tive um mal-estar com 40 semanas e acabei no hospital. Lá, me consultei com um cesarista assumido que me explicou como seria se escolhesse a cirurgia. Optei pela cesárea. Foi muito tranquilo. A recuperação foi boa e eu pude entender as mulheres que escolhem o procedimento. Quando engravidei pela quarta vez tive certeza: faria cesárea, mesmo se não tivesse indicação. Só não esperava entrar em trabalho de parto dois dias antes, foi a primeira vez que isso aconteceu, meus dois primeiros foram induzidos. Cheguei ao hospital com contrações e desabei diante do médico. Disse a ele: ‘Pelo amor de Deus, não me obrigue a ter um parto normal, eu já passei por isso’. Ele pediu ao médico de plantão, que aceitou operar. Passei mal na mesa de cirurgia e fiquei com medo de morrer. Minha pressão caiu muito e achei que não conheceria minha filha. Se recomendo parto normal ou cesária? Depois de tudo que passei, acho que parto é igual a orientação sexual, não se deve opinar na do outro.” - LILA ANANDA, 25 ANOS, ARTISTA PLÁSTICA 

O corpo é poderoso

“No Brasil, muita coisa precisa mudar. Os planos de saúde precisam adequar suas estratégias e tornar o parto normal mais atraente para o médico conveniado. Os hospitais precisam criar estruturas facilitadoras de um parto humanizado, disponibilizando recursos, como banheira, bola, banqueta e um ambiente acolhedor para toda a família. Os profissionais de saúde precisam reciclar suas práticas e prestar um atendimento coerente com a medicina baseada em evidências, que está de acordo com tudo o que é preconizadopelo movimento da humanização do nascimento. As agências reguladoras precisam fiscalizar e punir as cesarianas e intervenções realizadas sem uma boa indicação. Mas, principalmente, as mulheres precisam derrubar mitos e medos, exigir seu direito de serem respeitadas e acreditar mais na natureza e no poder de seu corpo.” - ÉRICA DE PAULA, PSICÓLOGA, DOULA E PRODUTORA DO FILME O RENASCIMENTO DO PARTO

http://revistatpm.uol.com.br/revista/146/reportagens/por-onde-saem-os-filhos.html

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Como é nascer no Brasil?

Por Simone Diniz, médica obstetra PhD
Texto retirado da fanpage O Renascimento do Parto - O Filme


Primeiro nasce-se cada vez menos. A gente teve uma queda muito acentuada de nascimentos no Brasil. E quanto mais escolarizada e maior a renda, menor a fecundidade. No caso brasileiro, o parto é muito medicalizado e muito marcado pela hierarquia social da mulher. Para algumas questões de saúde, como para quem tem HIV, precisa de um antirretroviral ou de uma cirurgia, você tem o mesmo procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado como aceitável. Para o parto, não. A gente tem uma assistência ao parto que para as mulheres de menor renda e escolaridade e para aquelas que o IBGE chama de pardas e negras, muito diferente do das mulheres escolarizadas, que estão no setor privado, pagantes.

Normalmente as mulheres de renda mais baixa no Brasil têm uma assistência sem nenhum direito a escolha sobre procedimentos e os serviços atendem para um parto vaginal com várias intervenções que não correspondem ao padrão ouro da assistência como ficar sem acompanhante. No setor público é pior, mas vamos levar em conta que no setor privado 70% das mulheres nem entra em trabalho de parto. Muitas mulheres são mantidas imobilizadas e recebem, em algum momento do trabalho de parto, alguma droga para induzir ou acelerar, a ocitocina sintética principalmente. O uso de ocitocina deveria ser extramente cuidadoso, porque ela tem vários efeitos adversos como, por exemplo, tornar a contração artificialmente intensa e muito dolorosa. Então as mulheres frequentemente descompensam emocionalmente. E alguns procedimentos invasivos que não deveriam ser usados, a não ser com extrema cautela, são usados livremente como o descolamento das membranas, que é muito agressivo, doloroso, aumenta o risco de lesão de colo e infecções e a ruptura da bolsa, como aceleração do parto. É uma ideia de produtividade que parte do pressuposto que o parto é um evento desagradável, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que, portanto, deve ser encurtado.

Isso no sistema público, não é?

Sim. E quando você chega no período expulsivo é imobilizada deitada. Outras pesquisas mesmo antes da “Nascer no Brasil” já mostraram que 90% das mulheres dão a luz imobilizadas deitadas de costas, que é uma posição que é antifisiológica, prejudica a mãe e o bebê, recebem uma manobra que empurra a barriga da mulher, sem contar a episotomia. Então mais da metade das mulheres sai com uma sutura genital, se não sair com uma abdominal. Raramente uma mulher sai do parto sem uma sutura. É um parto com intervenções desnecessárias, agressivas e dolorosas, em ambientes inóspitos e vexatórios, com procedimentos e rotinas degradantes, exposição da privacidade, tratamento insensível, rude e abertamente violento como muitas mulheres têm mostrado.

E com diferenças que passam pelo gênero, condições socioeconômicas, cor da pele…

As questões de gênero cruzam com as questões socioeconômicas. Existe uma ideia de que o sofrimento no parto é uma punição legítima pela mulher ter transado. Isso é muito repetido. O próprio ministro da Saúde disse publicamente, mais de uma vez, que durante a formação dele, o professor fazia esse tipo de violência verbal de caráter sexual com as mulheres, aquela coisa do “na hora que fez você não gritou”. Como diz o movimento feminista, “parto violento para vender cesárea”. Além disso, é muito raro que um profissional, independente da formação, tenha visto um parto espontâneo, fisiológico, planejado. Ele pode ter visto um que nasceu no corredor, no taxi, mas um que tenha sido planejado para isso ele nunca estudou.

Então para esse profissional, que aprendeu que as mulheres se beneficiam dos procedimentos, essa é a ideia de assistência ao parto. Para o sistema público é um: manejado, com hormônios, etc. No setor público, as mulheres não podem escolher porque essa escolha deve ser feita com base em critérios clínicos do que é seguro e apropriado para ela. No setor privado, considerando que as mulheres são mais escolarizadas e estão pagando, elas têm direito a autonomia. É uma autonomia relacionada à condição de pagante. No setor privado parte-se do mesmo pressuposto que o parto é uma coisa humilhante, primitiva, coisa de pobre, que vai danificar o períneo, que vai comprometer. É muito parecido com o conceito religioso de indulgência, como você paga, a gente pode fazer um desconto no seu pecado. E aí você pode fazer um bypass do trabalho de parto. Atualmente aceita-se internacionalmente que os melhores resultados para a mãe e para o bebê são aqueles do parto fisiológico e espontâneo, que se inicia, conduz e termina sem uso de intervenções. Defendo muito ardentemente o direito de escolha das mulheres. Mas precisa ser o direito de escolha informado.

Mas qual escolha? A da via de parto ou dos procedimentos? Porque se a gente não escolhe fazer uma cirurgia para retirar o apêndice, por que deveria escolher a cesárea? Não deveria ser apenas por indicação clinica?

A escolha tem que ser informada. Não existe escolha fora do seu contexto social. Vamos dizer que você mora em uma cidade e ninguém atende parto normal. No SUS é ocitocina, episotomia, Kristeller (manobra que consiste em empurrar a barriga). Se cair em um hospital escola, sua vagina vai passar pelo toque coletivo. Qual é a alternativa? A cesárea. Não existe escolha livre nesse sentido. No Brasil, a crença mesmo nos setores acadêmicos é que o parto vaginal é horrível e que a cesárea é a alternativa superior. Não adianta que toda evidência mostre o contrário. Evidência de curto prazo: aumento de risco na transição fetal neonatal. Existe muito mais segurança nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. O bebê tem menor chance de ir para uma UTI neonatal, de ter problemas respiratórios, metabólicos, infecção – ele tem o melhor prognóstico de todos. No longo prazo a gente sabe que o trabalho de parto em si desempenha um papel muito importante na ativação de certos sistemas orgânicos para a transição. Como o bebê nasce estéril, livre de bactérias, à medida que entra em contato com as bactérias da vagina durante o parto, ele será colonizado e isso desenvolverá um sistema imune muito mais saudável do que se nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse é conhecimento recente, mas já saíram pesquisas sobre risco diferenciado de asma, diabete, obesidade e uma série de doenças crônicas na infância e no longo prazo, porque a programação metabólica da criança é altamente dependente dessa colonização. Isso é muito importante.

Quando eu falo de escolha informada é informar sobre tudo isso. E é um problema ter os profissionais como fonte de informação porque eles desconhecem esse tipo de coisa. Porque ignoram ou porque não acreditam. Não é que ele engana a mulher, o filho dele nasce de cesárea! A cesárea é um recurso muito importante em todos os sistemas de saúde materna. Mas o que a gente faz no Brasil é pessimizar o parto para vender cesárea. Existe um conflito de interesses, as pessoas não querem que o parto melhore. Eles se livraram da imprevisibilidade do parto espontâneo através da eliminação do trabalho de parto. O que eles oferecem de plus para competir entre si? A festa! Porque o parto é um momento ritual onde o lugar da mãe e do bebê são marcados socialmente. Seja paciente do SUS, solteira, pobre, não branca, trabalhadora do sexo que vai parir no amparo maternal até a mulher de classe altíssima no hospital mais elegante. O lugar que você dá a luz é um marcador desse seu lugar social. Essa ritualística pesa muito e reflete os valores que a gente quer transmitir para as próximas gerações. Os padres já diziam que para Deus manifestar seu horror ao corpo ele tinha feito as pessoas nascerem entre urina e fezes. E, veja só, esse contato bacteriano que é o bacana!

Há diferenças regionais?

Elas estão se diluindo cada vez mais. As maiores taxas de intervenção são em regiões mais ricas: sul e sudeste. Centro este fica no meio seguida de nordeste e norte, quando você ainda tem um grande número de partos domiciliares com parteiras tradicionais.

Nos centros urbanos, o relato de violência é maior. As pessoas acreditam que isso é porque as mulheres urbanas identificam melhor essa violência e também nas comunidades menores as pessoas sabem quem é quem. A violência precisa de uma certa impessoalidade. A violência também é mais comum entre as mulheres mais pobres, menos escolarizadas, as negras e as pardas e as mulheres mais jovens. Em geral essas pessoas são mais maltratadas. É como se a gente tivesse uma hierarquia de respeitabilidade materna.

Aliás o pré-natal é outro período critico de desinformação, não?

O pré-natal na década de 1980 era a coisa mais linda. Com grupos de informação, material de divulgação, cartilhas lindas, ilustradas. Desapareceu tudo. Eu acho que a gente guinou da ideia de integralidade para uma ideia de aumento de consumo de exame e medicamento. Essa atitude educativa diminui lucros e os pacientes ficam mais exigentes. Às vezes o profissional nem tem má fé, ele realmente acredita naquilo. As pesquisas indicam que entrar em trabalho de parto aumentam muito o risco de você sofrer violência. É muito interessante o grau de hostilização da mulher em trabalho de parto. Seja no SUS, por conta do conjunto de intervenções agressivas ou no setor privado porque elas acham o fim da picada que aquela mulher esteja querendo dar problema, dar trabalho para eles. Eu já ouvi uma mulher dizer que como insistiu muito com o médico que queria parto normal ele indicou um psicólogo dizendo que ela tinha traços masoquistas!

Vai acontecer essa mudança?

Só se partir das mulheres. Quando as pessoas se derem conta desses impactos sobre o bebê, creio que pode mudar."

Por Simone Diniz, médica obstetra PhD

Ela é considerada uma das pesquisadoras mais importantes em saúde materna no Brasil. Parte da coordenação do estudo “Nascer no Brasil”, que faz um panorama de como se nasce no país, ela dá números e declarações novas e impactantes nesta entrevista exclusiva à Pública, para a reportagem "Na hora de fazer não gritou"

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

E na hora de escolher uma parteira?

Por Maíra Libertad Soligo-Takemoto (enfermeira obstétrica)

Rio de Janeiro
O parto é um momento único na vida de uma mulher e de uma família. Escolher com cuidado quem estará ao seu lado, para te dar apoio ou ajudar em caso de necessidade, é uma tarefa delicada, que envolve entender primeiramente o que você deseja para o seu parto e, em seguida, procurar por alguém que possa oferecer o cuidado que você tem em mente (e merece!). Os critérios que as mulheres usam para escolher suas parteiras para um parto domiciliar são muito pessoais, mas algumas informações objetivas podem ajudar a definir se vocês estão na mesma sintonia. Ler relatos e pedir recomendações (para amigas, para a doula ou em grupos de discussão, por exemplo) são estratégias úteis, mas uma conversa franca e aberta, olho no olho, sobre seus desejos e necessidades e sobre as experiências e práticas da parteira é, sem dúvida, o canal mais adequado para isso.

As perguntas abaixo foram baseadas, adaptadas e modificadas a partir deste post aqui do blog Birth Without Fear: http://birthwithoutfearblog.com/2013/01/01/44-questions-for-your-midwife/. Não se trata de um checklist ou lista ideal de questões, já que cada mulher vai questionar aquilo que mais se afina com seus desejos e necessidades. Mas é sempre bom ter um ponto de partida!

Antes de qualquer coisa... Questões para você!
  1. O que você deseja para o seu parto? Você tem um plano de parto?
  2. De que coisas você não abriria mão?
  3. Como você imagina que vá se sentir nesse momento?
  4. Que tipo de pessoa/profissional você visualiza ao seu lado durante o parto?
  5. Como é o apoio/suporte/cuidado que você espera receber?
Sugestões de questões para discutir com a parteira
  1. Há quanto tempo você trabalha com partos? E partos domiciliares, especificamente?
  2. Quantos partos domiciliares você já atendeu? Posso entrar em contato com algumas dessas mulheres? Você tem relatos, filmes ou fotos?
  3. Qual sua formação? Onde? Quais cursos?
  4. Você participa de algum grupo ou entidade de profissionais? Costuma discutir casos ou pedir segunda opinião?
  5. Você tem treinamento em emergências obstétricas? E reanimação neonatal?
  6. Quantos partos você acompanha por mês? Você tem algum compromisso (viagem, férias, congresso etc.) planejado para meu período provável de parto?
  7. Em caso de imprevisto ou impossibilidade de atender ao meu parto, qual é o seu procedimento?
  8. Você trabalha com backup ou assistente? Quem são as pessoas que compõem sua equipe? Posso conhecê-las antes do parto?
  9. Você trabalha com doulas? Eu posso escolher minha própria doula ou você trabalha com alguma na equipe?
  10. Você trabalha com fotógrafa de parto? Eu posso escolher minha própria fotógrafa ou você trabalha com alguma na equipe?
  11. Eu pretendo ter meus familiares (X, Y e Z) presentes no parto comigo. Você tem alguma objeção à participação das pessoas que eu escolher? Familiares e amigos, por exemplo?
  12. Que equipamentos e materiais você traz para o parto? E medicamentos?
  13. Que materiais eu precisarei providenciar?
  14. Como é o seu acompanhamento pré-natal? Eu precisarei visitar um obstetra também?
  15. Que exames você pede durante a gestação, em geral?
  16. Qual é a sua taxa de transferência para o hospital? Quais as principais razões?
  17. Você já teve alguma complicação grave? Qual? Qual foi o desfecho? E óbito (de mãe ou bebê)?
  18. Quais procedimentos você realiza de rotina durante o trabalho de parto?
  19. Quando você considera importante realizar exames de toque? Eu posso recusá-los?
  20. Você faz episiotomias de rotina? Você considera que há alguma situação em que a episiotomia é importante? Qual?
  21. Qual é sua prática em relação a: puxos dirigidos, posição para o parto, kristeller (manobra de empurrar a barriga), soro com ocitocina em casa, momento do clampeamento do cordão, contato pele a pele etc.? [listar as que forem importantes para você]
  22. Quais as situações ou fatores de risco na gestação que me impediriam de ter um parto domiciliar?
  23. Se eu for transferida para o hospital ou para o cuidado de um obstetra, você vai continuar me acompanhando?
  24. E se eu passar das 41 ou mesmo das 42 semanas? Qual a sua conduta nesses casos? Eu ainda poderei parir em casa? Você recomenda indução? Quando?
  25. Qual é sua conduta em relação ao rastreamento do streptococcus do grupo B? Eu posso escolher não fazer o exame? E se der positivo, eu terei que parir no hospital?
  26. Você tem experiência com partos normais depois de cesárea (uma ou mais de uma)? E pélvicos? E gemelares? [listar outras situações em que você se encaixe ou que te preocupam]
  27. Como é seu acompanhamento pós-parto? Você ajuda com a amamentação, se necessário? Após o parto, eu precisarei ter uma avaliação imediata de um pediatra? Em que situações?
  28. Quanto você cobra? Em que momento será feito o pagamento? (antes ou após o parto, por exemplo)
  29. Você aceita parcelar? Qual é sua política de reembolso se eu decidir mudar de profissional ou desistir do parto domiciliar? E se eu for transferida?
Outras questões para você pensar :)
  1. Você conseguiu perguntar tudo que queria? Questionar e colocar suas vontades? Por quê? Por que não?
  2. Como você se sentiu em relação ao parto enquanto conversava com essa profissional ou depois da conversa? Mais ou menos empolgada, mais ou menos ansiosa do que o normal?
  3. Você gostou da visita? Foi agradável?
  4. Se havia outras pessoas da sua família presentes, como foi a experiência para elas? Como foi a interação entre a parteira e essas pessoas?
  5. Você sentiu que a parteira ficou incomodada ou intimidada com suas perguntas e seu nível de informação como consumidora?
(Maíra Libertad Soligo-Takemoto)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A armadilha da mulher maravilha

Original na fanpage de O Renascimento do Parto - o Filme
Por Dr. Daniel Becker (médico pediatra)

(Foto por John Hende em Uganda)

- Nasce um bebê no Xingu. Todas as mulheres da oca se mobilizam. A mãe está cercada de cuidados e apoio.

- Nasce um bebê no sertão das Minas Gerais. A avó, a bisavó, as tias, a prima cercam a mãe de cuidados.

- Nasce um bebê numa aldeia africana. Numa tribo em Maui. Numa cidadezinha no interior da Tailândia ou da Polônia ou da Inglaterra – a cena se repete. Na favela da Zona Norte as vizinhas e a tia que mora na laje de cima se encarregam de ajudar. E nas mansões dos jardins? Não são mais a avó e as vizinhas, mas as duas babás, a enfermeira, a faxineira, o motorista e o segurança.

Nasce um bebê em Copacabana, no apartamento 1104. A avó está trabalhando em tempo integral. O pai só tem cinco dias de licença. A vizinha do 1103 não só não ajuda, como sequer conhece, e ainda reclama do choro noturno. E a empregada diz que só ganha pra cuidar da casa. Ajudar à noite, nem pensar.

E aí temos esse fascinante fenômeno social: a única mulher do planeta que é deixada pra cuidar de um bebê sem nenhuma ajuda é a da classe media, urbana, ocidental. Pior: ela achava que ia conseguir…

Mas essa onipotência (culturalmente induzida, claro – e muitas vezes socialmente exigida…) só dura até o 5o dia, quando muito. Na segunda semana a mulher percebe que um bebê demanda demais. Precisa de atenção 24 horas, permanente. Que os intervalos do sono não são suficientes para que ela viva: descanse, almoce, tome um banho, respire, olhe pela janela, durma meia hora, atenda ao telefone, responda um email. E os cuidados muitas vezes exigem duas pessoas. Sem ajuda, é virtualmente impossível. A amamentação facilita e muito o cuidado, já que não é preciso tratar de mamadeiras, latas, esterilizadores e bicos. Mas é preciso tempo e descanso para produzir leite. É o clássico bordão, muitas vezes ignorado: um bebê só ficará bem se sua mãe estiver bem. Em alguns momentos, é crucial que a mãe volte a ser mulher – um indivíduo separado de sua filha, que precisa descansar, se cuidar, relaxar, pensar em outras coisas. Ela precisa desses momentos como o bebê precisa do seu leite.

Por isso, é preciso que tenhamos menos onipotência, e que reconheçamos que vamos sim precisar de ajuda. Para isso, é necessário planejamento: quem vai ajudar, como, quando. O pai vai segurar a onda nas noites? Até quando? A avó pode mesmo ajudar? E os conflitos que tantas vezes surgem nesse momento? Uma coisa é apoiar, acolher; outra, se intrometer ou criticar – fronteira sutil e muitas vezes rompida de forma inconsciente e perversa. A empregada vai cuidar da casa? Vai ter comida pronta? O patrão vai respeitar e não ligar para falar de trabalho?

Nos dias de hoje, a situação se complica ainda mais. Em nossos tempos hiper-conectados, de distrações múltiplas e permanentes e com enorme apelo, é dificílimo estarmos concentrados em uma tarefa. Muitas vezes a futura mãe se ilude e acha que vai amamentar, trocar fraldas, ver a novela, passar email de trabalho, estudar para o concurso e postar no Facebook, ao mesmo tempo, já nos primeiros dias de vida do recém nascido.

E como se a situação em si já não fosse complicada o suficiente, aparecem outros obstáculos: o marido quer ensinar a colocar o bebê no seio (com a melhor das intenções), dizendo que ela está fazendo errado; a mãe (avó do bebê) diz “mas o que custa dar uma mamadeirinha, ele chora tanto”; as amigas dizendo que pra elas foi muito simples, que fizeram assim ou assado e que você está fazendo tudo errado; a prima exibicionista cujo bebê dorme bem, mama bem e “não dá nenhum trabalho”…. e a sociedade toda dizendo que se você não consegue amamentar seu bebê e cuidar dele integralmente, é porque não tem competência.

Reproduzo aqui um depoimento da Chris Nicklas em seu site:

“Amamentar é…” que descreve essa situação de forma muito concreta e emocionante:

“Tantas pessoas entraram na minha casa com a intenção de ajudar! Nossa, nem sei dizer… Quantas realmente me ajudaram? Conto nos dedos!

Qual será o problema? Por que é tão difícil se abrir para enxergar o que o outro precisa?

Me recordo de uma situação em específico. Eu com o mamilo esquerdo inflamado sofrendo por ainda sentir dores no aleitamento materno, apesar dos meus filhos já estarem com três meses. As pessoas passando por mim dizendo barbaridades do tipo:

- É assim mesmo, vai calejar…

- Dê a mamadeira! Olha o que você está fazendo com você mesma, pra quê?

- Dê o peito assim mesmo! Não pode estar doendo tanto assim!
As horas passando e o meu desespero aumentando. Minha consulta médica já estava marcada. Mal eu sabia que estava com sapinho e por isso voltava a ser dolorido amamentar. Meu estado emocional não me permitia enxergar um palmo na frente do nariz!
Muito bem, numa certa altura chega minha sogra em casa. Me olha e fica devastada com o meu estado. Minha cara era de puro desconsolo. De repente ela me lança a seguinte pergunta:

- Minha filha, o que você precisa? Me diga o que fazer para te ajudar…

Meus olhos se encheram de lágrimas. Uma pergunta tão simples e tão rara de se ouvir.

Ficamos ali nos olhando, enquanto meu coração transbordava de tantos sentimentos e emoções.”

O que a mulher precisa no momento da amamentação é apoio de verdade. Apoio aberto, honesto e atento. Ela não precisa de crítica, ensinamentos verticais, lições de moral ou prescrições autoritárias. Muito menos de conselhos sobre mamadeiras. Ela precisa de espaço psíquico, tempo e um mínimo de estrutura para se dedicar ao bebê. E de apoio técnico, prático, de que falaremos mais adiante.

Aliás, esse é um importante papel que o pai pode exercer nesse momento da vida familiar, o nascimento de um filho. Tão ou mais importante quanto trocar fraldas, ninar e dar banho, é garantir que o binômio mãe-bebê vai ter paz e tranquilidade para se conhecer, se conectar, evoluir em direção a um bom desenvolvimento e a uma amamentação bacana. Para isso, cuidar da casa, e garantir que esteja em ordem; comida na geladeira e contas em dia; atender o telefone e dar conta dos palpiteiros; receber as visitas e oferecer as desculpas pois a mamãe agora está descansando… e estar atento às necessidades da sua mulher.

Gosto de comparar a família neste momento do ciclo vital com o átomo: no núcleo central, mãe e bebê recém nascido – próton e nêutron – numa relação de simbiose e magnetismo. Em torno deles, o elétron, não diretamente envolvido na troca nutritiva mas fundamental no equilíbrio de energias, nas trocas afetivas, no cuidado com a família."

Por Dr. Daniel Becker (médico pediatra)

Para saber mais do trabalho do Dr Daniel Becker:

https://www.facebook.com/pediatriaintegral?fref=ts