(tradução livre de Flavia Penido)
Original em Bebedubem - Vila Mamífera
Vamos considerar o puerpério como o período que transita entre o nascimento do bebê e os dois primeiros anos, ainda que emocionalmente haja um progresso evidente entre o caos dos primeiros dias – em meio a um pranto desesperado- e a capacidade de sair ao mundo com um bebê nas costas.
Original em Bebedubem - Vila Mamífera
Vamos considerar o puerpério como o período que transita entre o nascimento do bebê e os dois primeiros anos, ainda que emocionalmente haja um progresso evidente entre o caos dos primeiros dias – em meio a um pranto desesperado- e a capacidade de sair ao mundo com um bebê nas costas.
Para tentarmos submergir nas difíceis trilhas energéticas, emocionais e psicológicas do puerpério, creio necessário reconsiderar a duração real deste trânsito. Refiro-me ao fato que os famosos 40 dias estipulados – já não sabemos por quem nem para que - tem a ver só com o histórico veto moral para salvar a parturiente do pedido (reclamo) sexual do varão. Mas esse tempo cronológico não significa psicologicamente um começo nem um final de nada.
Minha intenção – pela falta de um pensamento genuíno sobre o “si mesmo feminino” na situação de parto, lactação, criação e maternagem em geral- é desenvolver uma reflexão sobre o puerpério baseando-nos em situações que às vezes não são nem tanto física, nem visível, nem tão concreta, mas não por isso são menos reais. Vamos falar em definitivo do invisível, do submundo feminino, do oculto. Do que está mais além do nosso controle, mais além da razão para a mente lógica. Tentaremos nos aproximar da essência do lugar onde não há fronteiras, de onde começa o terreno do místico, do mistério, da inspiração e da superação do ego. Para falar do puerpério, teremos que inventar palavras, ou outorgá-las um significado transcendental.
Para nós, que já o temos transitado faz muito tempo, nos dá preguiça voltar a recordar esse lugar tão desprestigiado, com reminiscências à tristeza, sufoco e desencanto. Recordar o puerpério equivale frequentemente a reorganizar as imagens de um período confuso e sofrido, que engloba as fantasias, o parto tal como foi e não como havia querido que fosse, dores e solidões, angústias e desesperanças, o fim da inocência e o início de algo que dói trazer outra vez a nossa consciência. Para começar a armar o quebra-cabeça do puerpério é indispensável ter em conta que o ponto de partida é o parto, quer dizer, a primeira grande desestruturação emocional. Como descrevi no livro “Maternidade e o encontro com a própria sombra” para que se produza o parto necessitamos que o corpo físico da mãe se abra para deixar passar o corpo do bebê, permitindo uma certa “ruptura” corporal também se realiza em um plano mais sutil, que corresponde a nossa estrutura emocional. Há um algo que ''se quebra'', ou que se “desestrutura” para conseguir a passagem de “ser um a ser dois”.
É uma pena que atravessamos a maioria dos partos com muito pouca consciência com respeito a este “rompimento físico e emocional”. Já que o parto é sobretudo um corte, uma quebra, uma brecha, uma abertura forçada, igual à irrupção do vulcão (o parto) que geme desde as entranhas e que ao lançar suas partes profundas destroem necessariamente a aparente solidez, criando uma estrutura renovada.
Depois da “erupção do vulcão” nós as mulheres, encontramos com o tesouro escondido (um filho nos braços) e, além disso, com insólitas pedras que se desprendem como bolas de fogo (nossos “pedacinhos emocionais”, ou nossas partes mais desconhecidas) rodando em direção ao o infinito, ardendo em fogo e temendo destruir o que roçamos. Os “pedacinhos emocionais” vão queimando o que encontram a seu caminho. Olhamos atordoadas, sem poder crer a potência de tudo o que vibra em nosso interior. Incendiando e caindo no precipício, costumam manifestar-se no corpo do bebê (como uma planície de pasto úmido aberta e receptora). São nossas emoções ocultas que desdobram suas asas no corpo do bebe saudável e disponível.
Como um verdadeiro vulcão, nosso fogo roda por todos os vales receptores. É a sombra, expulsa do corpo.
Atravessar um parto é preparar-se para a erupção do vulcão interno, e essa experiência é tão avassaladora que requer muita preparação emocional, apoio, acompanhamento, amor, compreensão e coragem por parte da mulher e que de quem pretende assisti-la. Todavia poucas vezes nós as mulheres encontramos o acompanhamento necessário para introduzir-nos logo nessa ferida sangrenta, aproveitando esse momento como ponto de partida para conhecer nossas renovadas estrutura emocional (geralmente bastante maltratada, por certo) e decidir o que faremos com ela.
O fato é que - com consciência ou sem ela, acordadas ou dormindo, bem acompanhadas ou sós, incineradas ou a salvo - o nascimento se produz. Lamentavelmente hoje em dia consideramos o parto e o pós-parto como uma situação puramente corporal e de domínio médico. Submetemo-nos a um trâmite que com certa manipulação, anestesia para que a parturiente não seja um obstáculo, droga que permitem decidir quando e como programar a operação e uma equipe de profissionais que trabalham coordenados, possam tirar o bebê corporalmente são e felicitar-se pelo triunfo da ciência. Estas modalidades estão tão arraigadas em nossas sociedades que nós mulheres nem sequer nos questionamos se fomos atrizes de nossos partos ou meras expectadoras. Se foi um ato íntimo, vivido desde a mais profunda animalidade, ou se cumprimos com o que se esperava de nós. Se foi possível transpirar ao calor de nossas chamas ou se fomos retiradas da cena pessoal antes do tempo.
Na medida em que atravessamos situações essenciais de ruptura espiritual sem consciência, anestesiadas, dormidas, infantilizadas e assustadas… ficaremos sem ferramentas emocionais para rearmar nossos pedacinhos de chamas, permitindo que o parto seja uma verdadeira transição de alma. Frequentemente assim iniciamos o puerpério: afastadas de nós mesmas.
Anteriormente descrevíamos a metáfora do vulcão na chama, abrindo e rachando seu corpo, deixando a descoberto a lava e as pedras. Analogamente do ventre materno urge o bebê real, e também o interior desconhecido dessa mamãe, que aproveita o rompimento para correr pelas fendas que ficaram abertas. Esses aspectos ocultos encontram uma oportunidade para sair do refúgio. A sombra (quer dizer, qualquer aspecto vital que cada mulher não reconhece como próprio, a causa da dor, o desconhecimento ou o temor) utiliza a ruptura para sair de seu esconderijo e apresentar-se triunfante na superfície.
O problema para a mãe recente é que se encontra simultaneamente com o bebê real que chora, demanda, mama, se queixa e não dorme… e ao mesmo tempo com sua própria sombra (desconhecida por definição) , inabarcável e indefinível. Porém concretamente com que aspectos de sua sombra se encontram? Cada ser humano tem sua personalíssima historia e obstáculos a recorrer, portanto só um trabalho profundo de introspecção, busca pessoal, encontro com suas dores antigas e coragem poderá guiar-nos até o interior dessa mulher que sofre através da criança que chora.
O puerpério é uma abertura de alma. Um abismo. Uma iniciação. Se estivermos dispostas a submergir nas águas de nosso eu desconhecido.
Laura Gutman (tradução livre Flavia Penido)
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