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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Como é nascer no Brasil?

Por Simone Diniz, médica obstetra PhD
Texto retirado da fanpage O Renascimento do Parto - O Filme


Primeiro nasce-se cada vez menos. A gente teve uma queda muito acentuada de nascimentos no Brasil. E quanto mais escolarizada e maior a renda, menor a fecundidade. No caso brasileiro, o parto é muito medicalizado e muito marcado pela hierarquia social da mulher. Para algumas questões de saúde, como para quem tem HIV, precisa de um antirretroviral ou de uma cirurgia, você tem o mesmo procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado como aceitável. Para o parto, não. A gente tem uma assistência ao parto que para as mulheres de menor renda e escolaridade e para aquelas que o IBGE chama de pardas e negras, muito diferente do das mulheres escolarizadas, que estão no setor privado, pagantes.

Normalmente as mulheres de renda mais baixa no Brasil têm uma assistência sem nenhum direito a escolha sobre procedimentos e os serviços atendem para um parto vaginal com várias intervenções que não correspondem ao padrão ouro da assistência como ficar sem acompanhante. No setor público é pior, mas vamos levar em conta que no setor privado 70% das mulheres nem entra em trabalho de parto. Muitas mulheres são mantidas imobilizadas e recebem, em algum momento do trabalho de parto, alguma droga para induzir ou acelerar, a ocitocina sintética principalmente. O uso de ocitocina deveria ser extramente cuidadoso, porque ela tem vários efeitos adversos como, por exemplo, tornar a contração artificialmente intensa e muito dolorosa. Então as mulheres frequentemente descompensam emocionalmente. E alguns procedimentos invasivos que não deveriam ser usados, a não ser com extrema cautela, são usados livremente como o descolamento das membranas, que é muito agressivo, doloroso, aumenta o risco de lesão de colo e infecções e a ruptura da bolsa, como aceleração do parto. É uma ideia de produtividade que parte do pressuposto que o parto é um evento desagradável, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que, portanto, deve ser encurtado.

Isso no sistema público, não é?

Sim. E quando você chega no período expulsivo é imobilizada deitada. Outras pesquisas mesmo antes da “Nascer no Brasil” já mostraram que 90% das mulheres dão a luz imobilizadas deitadas de costas, que é uma posição que é antifisiológica, prejudica a mãe e o bebê, recebem uma manobra que empurra a barriga da mulher, sem contar a episotomia. Então mais da metade das mulheres sai com uma sutura genital, se não sair com uma abdominal. Raramente uma mulher sai do parto sem uma sutura. É um parto com intervenções desnecessárias, agressivas e dolorosas, em ambientes inóspitos e vexatórios, com procedimentos e rotinas degradantes, exposição da privacidade, tratamento insensível, rude e abertamente violento como muitas mulheres têm mostrado.

E com diferenças que passam pelo gênero, condições socioeconômicas, cor da pele…

As questões de gênero cruzam com as questões socioeconômicas. Existe uma ideia de que o sofrimento no parto é uma punição legítima pela mulher ter transado. Isso é muito repetido. O próprio ministro da Saúde disse publicamente, mais de uma vez, que durante a formação dele, o professor fazia esse tipo de violência verbal de caráter sexual com as mulheres, aquela coisa do “na hora que fez você não gritou”. Como diz o movimento feminista, “parto violento para vender cesárea”. Além disso, é muito raro que um profissional, independente da formação, tenha visto um parto espontâneo, fisiológico, planejado. Ele pode ter visto um que nasceu no corredor, no taxi, mas um que tenha sido planejado para isso ele nunca estudou.

Então para esse profissional, que aprendeu que as mulheres se beneficiam dos procedimentos, essa é a ideia de assistência ao parto. Para o sistema público é um: manejado, com hormônios, etc. No setor público, as mulheres não podem escolher porque essa escolha deve ser feita com base em critérios clínicos do que é seguro e apropriado para ela. No setor privado, considerando que as mulheres são mais escolarizadas e estão pagando, elas têm direito a autonomia. É uma autonomia relacionada à condição de pagante. No setor privado parte-se do mesmo pressuposto que o parto é uma coisa humilhante, primitiva, coisa de pobre, que vai danificar o períneo, que vai comprometer. É muito parecido com o conceito religioso de indulgência, como você paga, a gente pode fazer um desconto no seu pecado. E aí você pode fazer um bypass do trabalho de parto. Atualmente aceita-se internacionalmente que os melhores resultados para a mãe e para o bebê são aqueles do parto fisiológico e espontâneo, que se inicia, conduz e termina sem uso de intervenções. Defendo muito ardentemente o direito de escolha das mulheres. Mas precisa ser o direito de escolha informado.

Mas qual escolha? A da via de parto ou dos procedimentos? Porque se a gente não escolhe fazer uma cirurgia para retirar o apêndice, por que deveria escolher a cesárea? Não deveria ser apenas por indicação clinica?

A escolha tem que ser informada. Não existe escolha fora do seu contexto social. Vamos dizer que você mora em uma cidade e ninguém atende parto normal. No SUS é ocitocina, episotomia, Kristeller (manobra que consiste em empurrar a barriga). Se cair em um hospital escola, sua vagina vai passar pelo toque coletivo. Qual é a alternativa? A cesárea. Não existe escolha livre nesse sentido. No Brasil, a crença mesmo nos setores acadêmicos é que o parto vaginal é horrível e que a cesárea é a alternativa superior. Não adianta que toda evidência mostre o contrário. Evidência de curto prazo: aumento de risco na transição fetal neonatal. Existe muito mais segurança nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. O bebê tem menor chance de ir para uma UTI neonatal, de ter problemas respiratórios, metabólicos, infecção – ele tem o melhor prognóstico de todos. No longo prazo a gente sabe que o trabalho de parto em si desempenha um papel muito importante na ativação de certos sistemas orgânicos para a transição. Como o bebê nasce estéril, livre de bactérias, à medida que entra em contato com as bactérias da vagina durante o parto, ele será colonizado e isso desenvolverá um sistema imune muito mais saudável do que se nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse é conhecimento recente, mas já saíram pesquisas sobre risco diferenciado de asma, diabete, obesidade e uma série de doenças crônicas na infância e no longo prazo, porque a programação metabólica da criança é altamente dependente dessa colonização. Isso é muito importante.

Quando eu falo de escolha informada é informar sobre tudo isso. E é um problema ter os profissionais como fonte de informação porque eles desconhecem esse tipo de coisa. Porque ignoram ou porque não acreditam. Não é que ele engana a mulher, o filho dele nasce de cesárea! A cesárea é um recurso muito importante em todos os sistemas de saúde materna. Mas o que a gente faz no Brasil é pessimizar o parto para vender cesárea. Existe um conflito de interesses, as pessoas não querem que o parto melhore. Eles se livraram da imprevisibilidade do parto espontâneo através da eliminação do trabalho de parto. O que eles oferecem de plus para competir entre si? A festa! Porque o parto é um momento ritual onde o lugar da mãe e do bebê são marcados socialmente. Seja paciente do SUS, solteira, pobre, não branca, trabalhadora do sexo que vai parir no amparo maternal até a mulher de classe altíssima no hospital mais elegante. O lugar que você dá a luz é um marcador desse seu lugar social. Essa ritualística pesa muito e reflete os valores que a gente quer transmitir para as próximas gerações. Os padres já diziam que para Deus manifestar seu horror ao corpo ele tinha feito as pessoas nascerem entre urina e fezes. E, veja só, esse contato bacteriano que é o bacana!

Há diferenças regionais?

Elas estão se diluindo cada vez mais. As maiores taxas de intervenção são em regiões mais ricas: sul e sudeste. Centro este fica no meio seguida de nordeste e norte, quando você ainda tem um grande número de partos domiciliares com parteiras tradicionais.

Nos centros urbanos, o relato de violência é maior. As pessoas acreditam que isso é porque as mulheres urbanas identificam melhor essa violência e também nas comunidades menores as pessoas sabem quem é quem. A violência precisa de uma certa impessoalidade. A violência também é mais comum entre as mulheres mais pobres, menos escolarizadas, as negras e as pardas e as mulheres mais jovens. Em geral essas pessoas são mais maltratadas. É como se a gente tivesse uma hierarquia de respeitabilidade materna.

Aliás o pré-natal é outro período critico de desinformação, não?

O pré-natal na década de 1980 era a coisa mais linda. Com grupos de informação, material de divulgação, cartilhas lindas, ilustradas. Desapareceu tudo. Eu acho que a gente guinou da ideia de integralidade para uma ideia de aumento de consumo de exame e medicamento. Essa atitude educativa diminui lucros e os pacientes ficam mais exigentes. Às vezes o profissional nem tem má fé, ele realmente acredita naquilo. As pesquisas indicam que entrar em trabalho de parto aumentam muito o risco de você sofrer violência. É muito interessante o grau de hostilização da mulher em trabalho de parto. Seja no SUS, por conta do conjunto de intervenções agressivas ou no setor privado porque elas acham o fim da picada que aquela mulher esteja querendo dar problema, dar trabalho para eles. Eu já ouvi uma mulher dizer que como insistiu muito com o médico que queria parto normal ele indicou um psicólogo dizendo que ela tinha traços masoquistas!

Vai acontecer essa mudança?

Só se partir das mulheres. Quando as pessoas se derem conta desses impactos sobre o bebê, creio que pode mudar."

Por Simone Diniz, médica obstetra PhD

Ela é considerada uma das pesquisadoras mais importantes em saúde materna no Brasil. Parte da coordenação do estudo “Nascer no Brasil”, que faz um panorama de como se nasce no país, ela dá números e declarações novas e impactantes nesta entrevista exclusiva à Pública, para a reportagem "Na hora de fazer não gritou"

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